terça-feira, 3 de junho de 2008

DESÁGUA

Para Natalia Gonsales.

Ao som de violinos.

Como se fosse um anjo fumando, assim era Ana Lucia pelas tardes abafadas de Março onde seguia navegando entre ondas e marés instáveis de pessoas sobre a pedra.Ela transbordava junto com a fumaça dos carros algo de efêmero das grandes solidões entre muitos.Era como uma valsa metódica que desaguava por onde passava suas pernas e cigarros.Sua pele marcada dos 50 anos e a instabilidade de alguém que já suou e verteu todos os líquidos que seu corpo podia abandonar, era seca como a cidade.E seguia na Avenida Ipiranga com a sua pele alva e seca, seus olhos azuis e os cabelos abandonados sobre o vai-e-vem de almas, coisas e mistérios.Apesar de tudo era angelical como algo que se perdeu e se mantém aparentemente lúcido, era de uma loucura mansa.Entre embarcações de urbanos que se jogam sem salva-vidas nas torrentes de pedra, era assim que gostava de passar os sábados no centro da cidade.Não desperdiçava nada, nenhum personagem era desinteressante aos olhos de Ana.Tinha prazer em ver outros como ela, que eram secos como ela.E em especial aquela tarde, já que fazia quatro anos que seu marido faleceu.Desde então Ana se jogou em algo que não se explica, algo que é maior do que a linguagem e qualquer paixão.A vida seguia com levas de passantes pelas tardes de sábado como se sua vida fosse portas fechadas, livro que caem,dores que nascem, alguém em seu ultimo suspiro, o som de um violino que se dilui entre a lembrança de uma orquestra harmônica e algo dentro dela que fechou e não quer mais se abrir.
Se bem que esse mergulho já foi longe de mais em sábados atrás onde bolinou um garoto que conheceu no jardim da luz, ele e seus 15 aninhos, Ana gostava de bolinar anjos e de tomar seus leites, sucos, suor, para hidratar algo que secou em si.Varava então a vida em busca de líquido que preenchesse seu rio.Corromper: seu suco preferido, nada lhe dava mais prazer do que ver algo se perder.Foi assim que se perdeu e assim que devia ser.
Conheceu Mauricio em um bar da São Luís, pele morena, estatura mediana, cabelos castanhos e seus encantadores 14 anos.Ana não teve duvida, tinha de ser ele.Ele contou entre as mordidas rápidas que dava no pão de queijo que Ana lhe pagará que vivia na rua desde os 10 anos quando fugiu de casa onde seu pai espancava ele e sua mãe todos os dias, nunca mais voltou, e diz que mesmo na rua é mais feliz do que naqueles tempos. Ana ficou encantada.Levou o menino para sua casa, algo dentro dela dizia que aquele dia ia transbordar por fim o parasita que a infectou quatro anos atrás quando se perdeu e nunca mais se encontrou.Ana deu banho no menino, cortou suas unhas e até mesmo aparou seus cabelos, o menino que achava tudo muito estranho não se permitiu perguntas já que há tempos não era tratado tão bem.Ela deixou o menino no banheiro e pediu que ele a esperasse chamar por ele, foi até o armário de onde tirou seu vestido de noiva. Era um vestido simples, mas tinha uma longa calda o branco já estava um pouco encardido, Ana sabia que tinha de fazer aquilo.Vestiu tudo até mesmos a longa luva branca, colocou um batom e se olhou no espelhinho da sala, gostou do que viu.Quando ela chamou o menino para vir à sala ela estava radiante como no dia de seu casamento há tempos não sorria e sua pele até aceitava com dificuldade o seu largo sorriso estampado no rosto.Ele ficou atônito parado no centro da sala, nunca viu alguém vestido assim para ele, ficou encantado e levemente assustado com toda aquela cena.
Acalentado no colo dela com um sorriso de menino que acabou de chegar ao mundo ele se entregou para algo que devia ser realmente seguro, abraçou a barriga de Ana com cuidado para não estragar o vestido mais lindo que já viu na vida e de lá não queria mais sair, como se fosse um feto que encontrará por fim o útero que não teve, Mauricio sorriu para Ana como uma criança que sorri para algo desconhecido que esta preste a conhecer e a gostar, como brincar de fazer bolinhas de sabão, nadar na chuva, trocar os dentes de leite e pedir dinheiro para a fada dos dentes e tantas outras descobertas reconfortantes da infância.Eles juntos na sala, ele preso a ela com um feto morto, ela a mãe que nunca foi.Os dois uma família, juntos como algo que se perdeu, mas foi encontrado em uma tarde de sábado quando os tempos já não anunciavam vitórias e as pessoas levavam consigo uma ideologia duvidosa de vida. Da janela o sábado passava comum, de dentro do apartamento o tempo parou.
Ana não conseguia fazer o que pretendia, não conseguia simplesmente largar o menino no meio da sala se despir e ganhar a sua paz com o ritual que ela mesma inventou há anos atrás. O menino era especial, ela viu em seu olhar algo de tão ausente que nem ela se achava no direito de sugar mais. Ela olhou na parede a foto de tantos outros conhecidos iguais a ela, outros que sabiam ser sugados e sugar vidas como alguém que toma um suco de laranja em uma lanchonete vazia. “Eram amigos”, ela falou pra si própria.Algo dentro dela acontecia enquanto o menino a abraçava forte no estomago com cuidado para não amassar o vestido mais bonito que já viu na vida, Ana começou a soluçar e quanto mais ela soluçava mais ele a agarrava e o tempo não passava, o relógio se negava a navegar naquele apartamento pequeno, abafado e mobiliado com poucos moveis do centro de São Paulo, e quanto mais ele a abraçava mais ela se desesperava. O menino agora já estava totalmente envolto em Ana, ela segurava a cabeça dele querendo tirá-lo dali, mas de lá ele não se mexia, era quieto, sereno e frágil como um verdadeiro feto. Ela chorava agora e suas lágrimas a fizeram lembrar do dia de seu casamento onde não parava de chover uma garoa fina que a fez quase escorregar na saída da igreja, quanto mais ela ficava com o menino nela mais ela se debruçava sobre aquele dia.Lembrou da igreja, as flores, os convidados, a decoração feita por sua mãe, os primos distantes do interior, o violinista contratado por sua avó, o padre esquisito que sua madrinha fez questão de contratar já que ele é quem tinha a batizado quando neném, seu pai que já não estava bem, sua mãe preocupada com seu pai e por fim o Roberto que estava lindo e estampava no rosto o sorriso mais seguro que ela viu na vida.Quando Ana se debatia em seus devaneios o menino que agora agarrava forte o vestido (já que o cuidado com ele era algo que já não tinha mais importância) foi despertado da espécie de transe que havia entrado, ele agora precisava de algo a mais dela, não sabia explicar por que, mas foi com as mãos direto aos seios de Ana que agora já estava totalmente recostada no sofá de couro marrom com os olhos semi aberto, as lagrimas marcavam o vestido como um papel agredido pela tinha de uma caneta esferográfica.Ana nada fez quando Mauricio colocou seus mamilos na boca e ficou com eles imersos na sua saliva que era esquentada pelo calor dos seios de Ana. Mauricio ficou muito excitado com aquilo, contraía a mãos em seu pau que estava rijo, muito rijo.Nessa mesma posição Mauricio foi procurando com sua mão o sexo de Ana.Ela deixou.
Agora o relógio voltava a andar e as coisas eram como deviam ser.Ele a abraçou forte por uma ultima vez, e logo se encaixou nela, foram navegando por rios desconhecidos que indicavam desaguar no mar, a brisa anunciava os ventos salgados da maré.Transbordaram os desejos chegando ao mar onde é perigoso ser levado por uma correnteza, e foi o que aconteceu com Ana.
No meio daquele oceano-apartamento Ana se perdeu novamente em algo que é inominável, ele a procurava sobre aquelas águas, mas só conseguia ouvir seus berros falando para a deixar, para sair de lá, gritava desesperada com o menino dizendo que não o queria mais lá, gritava repetidamente para ele e para si mesma que já tinha o que verdadeiramente queria, o que verdadeiramente queria.Ele tentou falar com Ana, mas por mais que gritasse ele não a encontrava no meio de tanta água e correnteza. Ele foi nadando com dificuldade em direção a porta do pequeno apartamento, não queria sair, mas Ana agora já não pedia, ela gritava e ameaçava que se ele não fosse ia se abandonar naquelas águas para nunca mais emergir.Receoso ele abriu a porta e toda aquela água invadiu as escadas do prédio, os apartamentos, o poço do elevador para invadir as ruas, as casas, as lojas, outros prédios, empresas, shoppings, cinemas, teatros, parques, estradas e vidas.

David Cejkinski

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