quinta-feira, 12 de junho de 2008

Corpo Partido

Ele desceu hoje as escadas do prédio com um desgosto peculiar de café da manhã amanhecido em seu paladar. Era outono, mas as pessoas estavam expostas na rua com uma sensação esquisita de fim de ano. A velha andança de sempre aos Sábados pela manhã em direção à sua aula de arte, gostava de se tornar artista uma vez por semana. No entanto algo lhe coçava os miolos naquele dia, as pessoas estavam vestidas de maneira sóbria de mais, mesmo que fosse outono, mesmo que o frio ensolarado tomasse conta da pele na manhã plena e calma de Maio. Percebeu que algo havia mudado enquanto dormia e não havia sido avisado.”Será alguém importante morreu? Será é um luto por algum desastre natural na China? Ou alguma guerra civil no Rio de Janeiro? Será que havia acontecido mais um Tsunami ou coisa parecida e ele não havia sido avisado?”, pensou freneticamente. Ta certo que ontem não ligou a televisão, ficou por horas digerindo um livro de filosofia qualquer que lhe havia causado náusea, tudo lhe fazia muito mal por aqueles tempos. Quando atravessava a rua em direção ao bar (certo de que lá ia se ouvir alguma novidade) avistou sua vizinha do quinto andar, sempre muito simpática, passou reto e nem lhe percebeu, ele estranhou por um momento e assustado se deparou que ela carregava em sua mão esquerda o seu olho direito, ficou estatelado no meio da rua quase foi atropelado por uma BMW preta que sustentava nos faróis grande seios de mulher.
Pensou que fosse sonho, um pesadelo, mas na tentativa infantil de se beliscar percebeu na pele que estava acordado e ele mais que nunca sentia o mundo.
Reparou com espanto e admiração as árvores, havia pintos secos e bocetas caídas no chão, por um momento achou interessante este novo cenário até sentir o cheiro horrível que estava na rua. Quando acabara de atravessar a pista parou de reparar nos frutos caídos das árvores. Subitamente sua orelha direita começou a coçar irritantemente, quanto mais ele coçava mais a comichão lhe invadia a orelha. Como quem peida baixinho para ninguém ouvir, assim foi discretamente ao chão em direção a um dos sexos secos na calçada, e escondendo na palma da mão começou agora com a ajuda de um falo seco a coçar violentamente sua orelha que agora já estava sangrando de tanto roçar. Não demorou um minuto e estava com o pinto seco na mão e a sua orelha em carne viva caída no asfalto, começou a gritar, mas não sentia dor, gritava por que não queria mais sentir o caos daquilo tudo, onde havia parado? O que havia acontecido com seu corpo, com as formas do mundo?
Ele ficou contemplando com certa desolação sua orelha no asfalto, a orelha lá jogada perto do bueiro, sozinha e abandonada por seu dono, por um momento ele pensou com alivio “bem ao menos uma esta inteira comigo”. Quando decidiu pegá-la para guardar de lembrança em uma conserva de vidro e colocá-la em lugar de mérito na estante de sua sala, um rapaz já sem o nariz e as duas orelhas passou atravessando rapidamente a rua e de um só golpe colocou a orelha na boca e passou a devorá-la com grande vontade, o rapaz saiu correndo para não ter que vomitar a orelha de volta ao seu dono. Ele achou de mais aquilo, como já não se basta aquele caos todo ainda haviam comido a sua orelha como um chiclete! Ficou irritadíssimo, começou a gritar “Aquele rapaz comeu minha orelha! Peguem ele, ele comeu minha orelha!”, porem os passantes eram indiferentes, andavam na rua como se fossem zumbis em passarela de moda. Sentiu alguém gritar nas suas costas, quando olhou reconheceu a moça que fica no balcão da padaria perto de sua casa, ela estava nua e se oferecia a cada pedestre: “Moço sou virgem, aproveita que minha boceta ainda não secou e coma ela, coma moço, por favor, coma!” Ninguém se prontificava a ajudar a pobre moça, ele realmente ficou comovido com a cena afinal ninguém merece morrer virgem e com a boceta seca caída no chão, que destino! “Antes sem uma orelha”, pensou e se sentiu privilegiado. Mas nada podia fazer, definitivamente ele não estava em condições emocionais para socorrer a menina.
Sem saber o que fazer, e sem saber para onde ir apenas continuou andando para ver o circo de corpos partidos no asfalto, Boch não era nada perto do que estava vendo. Mais a frente avistou um velho que sempre ficava na porta do banco a pedir esmolas para os que acabaram de sacar as suas pequenas fortunas nos caixas eletrônicos, ele era o único que parecia ainda ter todos os órgãos em dia, quando reparou, ele sustentava uma plaqueta de papelão onde ofertava para quem quisesse um pedaço de seu corpo por um terço do total de sua soma bancaria, ele não acreditou no que viu e passou a rir muito e pensou: “que velho safado, mas que velho esperto!”.

-Até o pau vovô, vende também a rola?
-Essa foi à única coisa que já vendi, também já não me serve mesmo.

O velho riu com os seus poucos dentes podres e mostrou o buraco que agora tinha entre as pernas. Ele achou esquisito só o velho estar intacto enquanto tantos corpos já estavam partidos nas calçadas e outros tantos pedaços brotavam em lugares inesperados como nas arvores, carros, vitrines, havia também pedaços avulsos no meio das paredes, nas paredes se encontravam principalmente estômagos, fígados e rins. “A natureza mesmo no caos tem sua poesia” ele pensou irônico quando viu um braço pendurado no semáforo.
O que mais lhe assustava é que as pessoas estavam apáticas e não pareciam ter reações a aquela confusão toda. Uns andavam sem braços, outros já sem pernas se arrastavam com o que podiam, se tinham braços usavam, se apenas o tronco do corpo: então apenas rolavam pelas ruas. E parecia que todas as pessoas estavam nas ruas, que tudo estava presente nas avenidas, nas marginais, nas estradas. Ele pensou que isso era uma forma de protesto à cidade, afinal ela devia ver o que seus habitantes haviam se tornado. Para ele era remota a possibilidade de estar acontecendo à mesma situação em lugares como o Amazonas, “No Amazonas as pessoas são felizes” decretou infantilmente, se sentiu confortado por pensar que em algum lugar a forma não havia se quebrado e os corpos ainda podiam ser humanos, verdadeiros e inteiros.
Sentou-se em um banco de uma praça que sempre passava correndo quando voltava do trabalho, ele sempre tinha muita pressa durante a semana “Será que segunda-feira vou trabalhar?”, murmurou irônico.
Agradou a idéia de agora viver assim em uma sociedade se é que se pode chamar aquilo de sociedade, bem ele pensou que agora vivia em uma espécie de sociedade Anarquista! Sentiu-se muito, muito chique por que agora faria o que queria e ninguém seria contra ele já que todos se resumiam a partes caídas no chão, ou humanos em decomposição. Por um momento achou que nada disso ia dar certo, foi lúcido ao refletir que tudo ia se tornar muito monótono cedo ou tarde. Bem a verdade ele já sabia que seu vazio havia dilatado todas as possibilidades de mudanças mesmo se o mundo e o universo inteiro mudasse, ele ia continuar com as velhas impossibilidades de sempre. Sempre as velhas esperanças e resultados frustrados, sentado na poltrona de sua sala em um domingo de feriado.
Quando se levantou do banco sua perna direita ficou, ele não ficou espantado só ficou um pouco mais melancólico do que já estava, ele já se entregava. Nunca perdia o sarcasmo: “Sempre quis ser Saci-Pererê” gritou enquanto pulava em uma só perna para todo mundo ouvir.O cenário caótico já não mais lhe causava espanto, só era novamente outono e ele como os corpos partidos começaram a secar.
Quis cantar uma canção de partida em homenagem a sua perna que havia ficado abandonada na praça, mas sentiu que cantar uma bossa nova, ou um blues ou até mesmo uma canção francesa sofrida só ia aumentar mais a sua melancolia. Os seus pulos de uma perna só o acompanhavam como uma minimalista trilha sonora de um filme de arte onde tudo se justifica em nome da estética. Sentiu-se perdido, não conseguia ver arte em nada, justo ele que era artista aos sábados, aos sábados estudava historia da arte e seus percursos herméticos, gostava de entender a vida através das formas e linguagens.
Mais a frente perto já da grande Avenida próxima a sua casa bateu um instante de raiva nele, como era possível agora ele estar nesta situação e rodeado de pessoas iguais ou piores como ele? Pouco menos de uma hora estava em sua casa, inteirinho tomando seu café amargo para sair correndo em direção às horas mais queridas da semana... Já não acreditava em Deus, se havia alguma duvida de sua existência agora ele já não duvidava. Nenhum ser esplendido ia cometer tal ironia com suas criaturas, ele pensou enquanto sentou na calçada em frente à igreja de estilo gótico perto da grande Avenida.Ficou contemplando curiosamente as estatuas que agora pareciam ter texturas reais: pele, cabelo, olhos, lábios e tudo mais... Ficou apaixonado pelos anjos, nunca havia visto um com pele, eles eram de uma perfeição sublime, mas para sua decepção as estatuas não se mexiam e nem respiravam, ao menos ao que parecia, ele estava sentado no chão muito cansado e dava muito trabalho se levantar com uma só perna para averiguar se as estatuas realmente tinham vida ou se apenas “vestiam” em sua carcaça órgãos humanos.
Ficou durante um tempo nessa contemplação, as ruas estavam cada vez mais cheias de pessoas a andar desesperadamente sem rumo em todas as direções, todas apáticas sem se comunicar ou discutir todo aquele caos, umas já em estados deploráveis como aquelas que já sem as duas pernas apenas rolavam ou se arrastavam no asfalto com a ajuda das duas mãos ou do tronco. Ele mesmo já não sentia vontade nenhuma de falar com ninguém, se sentiu aliviado em poder ficar quietinho esperando a hora de tudo aquilo se transformar em apenas um sonho ruim. Levantou-se e agora sim ia na direção à grande avenida que de longe já se via que estava muito, muito movimentada, conseguia estar mais cheia do que as ruas por onde passará.
Parecia um desfile de anomalias como em um daqueles filmes sensacionalistas Hollywoodianos que insistem prever o fim do mundo. Um cheiro podre estava em todo lugar, ele próprio fedia de mais, ele que sempre foi higiênico, sempre: até no Carnaval! Seu nariz começou a coçar, ele não se entregou fácil, mas não demorou e o viu no chão ao lado de uma mão que já estava em decomposição ao que parecia. Quando olhou ao redor viu com uma mistura de espanto e conformismo uma multidão se despedir de seus órgãos um a um, era como tirar a roupa no meio da rua porem o que se tirava não era apenas o tecido que cobria a pele. Por um instante bateu-lhe uma curiosidade de saber o que havia também por de baixo da pele, algo que lhe explicasse sua existência. Assim como uma criança que desmonta um telefone para saber como funciona e se decepciona ao ver que não existe ninguém lá dentro e que aquelas pecinhas todas não fazem o menor sentido, ficou decepcionado vendo no asfalto aqueles pedaços vermelhos e moles se espatifarem no chão como um balão cheio d’água. Chorou um pouco por não encontrar dentro do corpo o real motivo de sua existência, se despediu gradativamente de sua ultima orelha, de sua ultima perna, de seus dois braços, de seus órgãos, tudo foi abandonando o corpo que agora se resumia a um tronco com uma cabeça a se arrastar no asfalto. A pedra agredia sua pele e lhe fazia sangrar cada vez mais...Ele não sentia nenhuma dor, ele ainda se sentia inexplicavelmente inteiro mesmo quando todo o seu corpo era ausente de órgãos, mesmo quando sua cabeça já praticamente vazia foi rolar e parar ao lado de um pneu de carro, algo nele era de total terror, ele ainda sentia o mundo em sua terrível condição. O que mais lhe desagradava era que mesmo sem corpo algum, mesmo apenas sendo uma carcaça que já foi habitada, ainda assim senhores! ainda assim ele sentia aquele vazio imenso dilatando tudo o que podia se chamar de corpo presente naquele momento.

David Cejkinski

3 comentários:

RÔ_drigo disse...

muiiiiiiito bem justificado o nome do blog, mandou bem(pra variar)amigo;D

Chico Ribas disse...

David... demorei para comentar. Lí o texto ontem e não conseui comentar. Hoje novamente estou aqui. Quando comecei a ler ja formei minha opinião de que era um texto surrealista, mas apesar desse surreal (carro com faról de seios, enfim) o texto é muito real. Essa decomposição dos orgãos que você diz nada mais é do que esse monte de corpo jogado pelas ruas. Me refiro aos moradores de rua quando cito corpos jogados. Infelizmente chegamos a esse ponto. O velho que vende o pau... é tão a cara da nossa realidade.
É um texto perturbador. Algo que faz a gente ir pra cama pensando.
É uma arte completa, que faz o seu papel de questionar a humanidade.
É lindo.
Muito Obrigado.
Beijos

Ramon Mineiro disse...

David, vou ser honesto com vc. gostei muito do texto, muito bem escrito e muito original. Você sabe mesmo imprimir um estilo com as palavras.
Só que cara, é muita viagem pra minha cabeça... bocetas e pintos caídos... gostei, mas já pensei nas coisas de forma literal entende... Diferentemente do comentário do chico.
Quero deixar claro, que o problema não é você, sou eu... tenho a mente poluída demais, hahahah...

Parabéns
Um Grande Abraço