sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Minha boca parada de mês em um pequeno grito

Eu vou voltar, pode crer, em um dia distante de feriado, vou voltar.
Se há algum tempo ultrapasso minha morte, há que um dia eu volte por puro desejo de regresso, eu vou voltar.
Aqueles dias na praia, mãos a se afundar na areia, de qualquer maneira eu sabia que ia chegar a algum lugar do outro lado, distante, como todos.
Eu preciso voltar, você me desculpe, para que minha falta de roupa ilumine minha obsessão, por isso volto, e estou aqui em transito, parada à espera de um sinal.
Meu amor, aqui pessoas não ligam pra festas, aqui meu amor, o fôlego dura sem nenhum cigarro, meu amor.
Vou visitar aquela vila do sul da Bahia, da praia e do sorriso com gosto de sal, vou visitar; a qualquer tempo.
Por que preciso te dizer olhando e sentindo sua boca com gosto de bergamota que comias sempre a todo instante em qualquer estação, por que preciso te dizer que eu voltei, fugi, por que eu preciso te dizer que ninguém em nenhum lugar do cosmos é obrigado a ser feliz, eu preciso te dizer.
Se a felicidade não cabe a mim nem a você e a ninguém conquistar, então é pra ti que preciso transitar, meu amor, será que entende? Você e seu cheiro indecente de bergamota, todos os dias chupavas com fiapos e dor nos dentes será que entende?
Já cheguei a dizer a você que não vestia nada que me cobrisse, de verdade, agora sou toda inteira, toda eu mesma, toda. Não posso negar que é uma delicia andar sem usar o corpo, tenho certeza que você ia gostar, por isso transito em direção a mim, por que eu também sou você, meu amor, eu toda você, sempre.
Às vezes se eu passo por qualquer lembrança é de palavras e luz que meu corpo toma forma, o corpo toma forma no regresso, eu toda você, você eu, essa passagem ─ o nosso manifesto.
Gostei daquele jeito súbito que me pegou na praia, eu melada de bronzeador, você e o gosto de bergamota, a areia fina e quente, só nós e o sul da Bahia presente, aquele vento forte que agora sei que se trata de transito de pessoas ausentes, sim, a Bahia sempre é rota de fuga de nós (os ausentes).
Precisamos de geografia, sim, nós também, eu-você-você-eu dedicávamos a estudar nossas geografias, os contornos, os dias, minha boca parada de mês em um pequeno grito.
Sinto ainda a marca de seus dedos amassando meu braço antes do beijo-bergamota-que-tu-despencou-em-mim, ainda sinto seus dedos amassando os meus seios enquanto beijavas minha boca quente do sol e ainda estávamos ali presentes gozando toda a festa que seus dedos tramavam, nós com nossas pontes apontadas para a reta final.
Lembro, antes, da Marcinha nos dando o jogo de pratos de porcelana que eu queria tanto, os presentes tão bonitos, meu amor, que pena, nunca vi minha mãe tão feliz dentro de uma igreja, que pena, meu amor, realmente os presentes eram lindos, nós, a festa, as flores e seus dedos festejando no altar a aliança agora pregada em nós, meu amor, que pena, senti como se um coro daqueles pássaros pretos, um daqueles que vimos um dia na praia com um tempo ameno invadissem o templo.

Se eu tivesse ainda meus braços agora estariam pousados em nossa areia, naquela curva com as falésias ao fundo que abraçavam o vento e davam adeus à África do outro lado do Atlântico, bonito lugar para um réquiem de fim de ano, eu lembro que pesquisamos por meses.
Se agora deslizo em direção as águas sem saber pra onde, eu apenas vou, ultrapasso as ondas-barreiras-de-nosso-amor, e me diluo feito sonrizal na água salgada, eu me diluo entre as pedras, areias, conchas, ostras, e atinjo o silêncio ensurdecedor de quem sempre busca o mais fundo no abismo, se jogar da superfície e se diluir é bom como ter medo, sim, hoje sinto que até gosto dos sentimentos que antes detestava, hoje sou só ensaio de sentimentos porque tudo me toca tanto que as emoções são tão transitórias como eu nessa passagem tropical. E quando tento emitir qualquer som é de Luz que meu corpo toma forma, agora meu nome é Raia, em hebraico significa vida, sempre tive inveja das israelenses por que em vida eu queria ter a poesia e a luz plena em meu nome próprio, ter o dom da vida e a claridade no nome é a maior poesia que alguém pode receber em vida, acho que já tinha te dito isso, meu amor. De qualquer jeito sei que me entende, como sempre, eu também te entendo, se te entendia até fumando debaixo de chuva em Amsterdã como agora não havia de te entender, meu querido. Só não me cobre, a única coisa que não suportava em ti era a duvida do amor que eu tinha a ti, mesmo com tudo isso, com nossa historia, o nosso fim, mesmo com tudo isso não é possível que duvides ainda de meu amor, agora já te sinto mais próximo, agora posso ouvir melhor sua pele morena, seus cabelos castanhos, sua boca com aquele cheiro, seu nariz, sua testa com aquelas entradas que quase sempre eu pousava minha mão na hora de dormir, e mesmo assim não éramos felizes.
Mesmo com as viagens para a Europa, Ásia, Oriente Médio e lógico a nossa rota preferida: o nosso próprio país, mesmo assim não éramos felizes, mesmo com o apartamento no Jardim Europa e a casa no centro histórico de Paraty nós não éramos felizes, mesmo com nossos corpos saudáveis e as noites de eterno gozo nós não suportávamos os nossos orgasmos, mesmo você um bem sucedido advogado e eu uma violinista empregada na OSESP (como sempre sonhei) nós não suportávamos os nossos dias, e se tocar a vida feito um disco arranhado, e se tocar violino pra burguesia era algo liricamente insuportável, e se você lecionava pra jovens cretinos em eterna agonia, e se nossas vidas eram perfeitas a nossa capacidade de sentir o mundo estava entupida, os poros já não sentiam nem mais dor, eu sei, eu lembro, nossas peles estavam curtidas do tempo maldito de vida que éramos obrigados a atravessar, e agora depois do beijo com gosto de sal, depois de seus dedos e festas, e agora depois das mãos a se afundar na areia, meu amor, mesmo depois de nosso ultimo manifesto ─ os corpos colados sob as ondas, aquela pedra amarrada em nosso calcanhar, a minha boca para de mês em um pequeno grito ─ assim nos diluímos, assim nos envenenamos, naquela curva do sul da Bahia, as falésias como testemunhas, o vento dos ausente a sussurrar em nossos ouvidos e a correnteza a nos puxar para nossa ultima ponte; se mesmo depois eu tenho que te falar que aqui onde estou, por que não sei onde você esta e por isso transito, aqui onde estou eu ainda me sinto, já sou outra, mas ainda é insuportável se sentir e entender que mesmo aqui não existe o vácuo, felicidade eterna, tranqüilidade em fim toda aquela besteira que tínhamos certeza que uma coisa ou outra íamos acabar conquistando no final da ponte.
E se ainda me sinto, e se ainda preciso de ti é pra ti que estou voltando meu querido, ultrapassando as baleias Jubartes com o seu lindo e lustrado couro preto, o som de farol em alerta que elas emitem me conduz a você, eu e as baleias a se diluir por entre o abismo que me separa de ti.
Passando por corais, peixes, coisas e profundezas eu te avistei assim, com o corpo encostado em uma pedra, consigo te ver com clareza por causa de minha luz, de meu novo nome, consigo lhe ver sozinho, as baleias te respeitam e a ti não chegam, nem minha luz a incomodam, e te vejo ali sereno repousado na pedra ainda com nossa aliança no dedo, e assim eu fico a contemplar o seu corpo, agora eu e você sempre: sob uma nova espera.

David Cejkinski